EDGAR MORIN: 103 ANOS DE UM ACONTECIMENTO EM CURSO INCESSANTE EDGAR MORIN: 103 YEARS OF AN INCESSANT EVENT

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Valentim da Silva

Abstract

Eu sou o Valentim da Silva, professor há 15 anos na Universidade Federal do Paraná (UFPR) – Litoral. Atuo em um curso de formação de professores para o Ensino Fundamental, dentro de uma proposta alternativa para o Ensino superior. A proposta abrange 3 espaços pedagógicos, e nenhum é disciplinar. Essa proposta avança rompendo com o paradigma tradicional na Especialização Alternativas para uma Nova Educação, mantida pela UFPR, que se constitui por meio de vivências e por princípios constitutivos, que são seis “inters”, constituídas em diálogos com os fundamentos propostos por Edgar Morin e pelo Pensamento Complexo. Os princípios constitutivos das ações são estes: Interterritorial, interorganizacional, intergeracional, intercultural, interexperiencial e intersaberes. Foi assim que surgiu o Movimento de Alternativas para um Nova Educação (MoANE), integrando pessoas que ainda sonham, elaboram projetos que transformam realidades e ações que aspiram um mundo melhor.


Foi tramando esses movimentos e ações que passamos a reconhecer em Edgar Morin uma fonte de aprendizagem e um marco teórico a partir do qual poderíamos reformular pensamentos, práticas e compreensões acerca da educação e da vida. Morin está presente em nossos movimentos e foi a partir do seu pensamento que nos aproximamos da Complexidade enquanto realidade concreta de tudo que existe e pode ser conhecido, para buscar dar corpo a propostas pedagógicas que rompem com o modelo atual de educação para o ensino superior. Celebrar os seus 103 anos é ter a oportunidade de celebrar um acontecimento que não cessa de conferir sentido, significado e provocações para o pensamento e para as relações.


A celebração dos seus 103 anos de vida e de suas contribuições para a educação e para o mundo é aproveitar a oportunidade para, de novo e outra vez, reconhecer a importância de alguém que dedicou sua existência a pensar e reformular os problemas humanos. Dia 08 de julho existe para celebrar uma vida vivida intensamente, intensamente narrada, intensamente ressignificada, carregada de sentidos que produzem outros sentidos sem ambicionar ter o controle de tudo que produz ou gera, porque são sentidos interdimensionais, intercomunicativos, inter-relacionais. Uma vida vivida, não para ser exemplo a ser seguido por todos e a todo momento, mas posta como um farol que circunda sua luz diante de um horizonte infindável de possibilidades.


Edgar Morin nega o pensar linear, o pensar em uma única direção, como uma única possibilidade de ser e estar no mundo, como se só pudesse oferecer uma única possibilidade de colocar em prática o mundo que almejamos construir. Para tal empreendimento, ele dialoga e convida a dialogar com as possibilidades do mundo, que estão nos lugares mais inusitados, para ressignificar o pensamento e a maneira de interpretar o mundo — sentidos em fluxo, em movimento, em transitoriedade. É necessário se permitir ir um pouco mais além daquilo que se impõe como limite e estabelecer interconexões. Sim, devemos dispor de uma assembleia de ferramentas, devemos encher nossa caixa de trabalho com as mais diferentes ferramentas, afinal tudo, até mesmo o banal, pode ser via para compreender melhor a complexidade, o estado concreto das coisas.


Se pudesse aplicar à educação formal, eu diria que a Didática, portanto, compreendida hoje como disciplina pedagógica, campo de investigação e exercício profissional e ramo da Pedagogia, é mais um dos instrumentos que precisam ser ressignificados para auxiliar nos processos de mediação da transformação da educação. As suas finalidades sociais e pedagógicas, os princípios, as condições de organização e os meios para efetivá-la são um dos grandes desafios dentro de uma perspectiva da Complexidade. Neste sentido, três aspectos que estão interligados devem ser considerados: 1º) Contraposições ao atual modelo educacional; 2º) Constituir e integrar coletivos; 3º) Uma reforma do pensamento por uma educação que contesta e que se contraponha à lógica tradicional, propondo uma ruptura paradigmática.


Essas provocações alicerçadas no Pensamento Complexo inspiradas por Edgar Morin valoriza a religação de saberes, que, por vezes, parece ser uma frase e uma necessidade demasiadamente anunciada, mas, na prática, ainda tímida. A ação é inferior ao discurso. Fala-se muito sobre interligar, porém as amarras disciplinares em geral impedem o livre trânsito entre uma e outra. É provocado pelos pensamentos de Morin que essa religação de saberes se torna possível e necessária, onde devemos buscar ampliar a nossa compreensão e a nossa consciência por meio de um conhecimento o mais pertinente possível, que não é outro senão aquele que valoriza aquilo cuja simplicidade é tratada como vulgaridade por uma autoridade disciplinar que só se justifica à medida que aceita somente aqueles que fazem uso da mesma gramática.


Edgar Morin nos ensina a viver e promover metamorfoses individuais, sociais e antropológicas, como vias para salvaguardar a humanidade e transitar entre vários domínios. Seus 103 anos são marcados por esse contrabando de saberes e um certo vai-e-vem das ideias, sem perder a autenticidade, movido pela curiosidade de querer saber mais para pensar melhor.


Pensar de maneira Complexa demanda o esforço de olhar o contexto da realidade na qual se está inserido. Para tanto, precisamos considerar múltiplas dimensões e aspectos que contemplem as estruturas sociais, econômicas, políticas, culturais e institucionais, tudo que envolve as pessoas e seus sistemas e mecanismos. Os aspectos epistemológicos, as tendências pedagógicas e suas intencionalidades e as próprias abordagens didáticas; aspectos específicos dos sujeitos, suas motivações, interesses, emoções, histórias de vida e, principalmente, o olhar de cada um, a janela pela qual cada um abre para ver a vida e o mundo em que estão, que fazem e querem construir.


Sim, Morin é um contrabandista de saberes que muitas vezes passa pelas alfândegas do conhecimento sem ser percebido, porque o faz com a sutileza e sagacidade dos grandes pensadores. Ele é um dos poucos pensadores de nossos tempos que pode nos auxiliar na ruptura paradigmática com o modelo atual da educação, que supervaloriza gramáticas dadas a priori e de uma vez por todas. Problematizar a reflexão sobre educação, fazer uma análise da didática e dos processos de ensino e a sua relação com a aprendizagem dentro da perspectiva do Pensamento Complexo é também um imperativo em nossos tempos, assim como é necessário nutrir nosso pensar guiado por princípios que Edgar Morin traçou em seus 103 anos de vida. Seria nosso melhor presente a ele, que nunca quis ser modelo absoluto para ninguém. A cada livro, a cada provocação, a cada encontro Edgar Morin se monstra, insisto, um acontecimento incessante.


No livro Histórias de Vida, de 2023, em entrevista à Laure Adler, Edgar Morin nos lembra que os Acontecimentos se inventam dia a dia e vão construindo uma narrativa que se inscreve na ordem dos dias e das vidas. Esta inventividade da narrativa viva provém sempre do que é desviante, coisa que ele sempre foi. É por isso mesmo que padronizar totalmente os processos educativos, de relações humanas e da existência é um erro a ser evitado.


Uma revolução, ensina Morin, deve corresponder a uma aspiração maior do que a uma realização pessoal, deve atender a uma necessidade de comunhão e de fraternidade coletiva. As aspirações devem atravessar a história humana, estar na base de todas as ações e motivando pessoas coletivamente. Morin nos lembra que esses acontecimentos, que se inventam no dia a dia, promovido por aspirações de mundos melhores, são respostas da criatividade humana, esse recurso ao qual recorremos para criar utopias e novas condições de possibilidades.


Como dar luz a criatividade inventiva no dia a dia com as aspirações comuns ao coletivo, via processos educacionais? Solidariedade, responsabilidade e autonomia. Isso é o que deve nos nutrir, essa necessidade ética, estética e histórica por aspirações. Isso é o que pode nos impulsionar a uma reforma do pensamento e da educação. Uma proposta de educação exige um conhecimento que considere todas as capacidades, subjetivas e objetivas, em processos que se caracterize por essa criatividade gerada por aspirações coletivas, por projetos educacionais que articulem experiências existenciais das pessoas em suas proposições pedagógicas e políticas. Ressaltando um dos maiores legados de Edgar Morin, para mudar de via é necessário mudar nossa maneira de conhecer e de pensar.


Retomar o Pensamento Complexo, assim como comemoramos 103 anos de uma vida dedicada ao pensamento e de um pensamento dedicado à vida, é apreender que os fenômenos, em sua diversidade, são o que de fato nos constituem e são interexperienciais, interculturais, interorganizacionais, intergeracionais, interterritoriais, constituídos pelos mais diversos intersaberes. Todos, ao mesmo tempo, em sinergia, cada qual na sua singularidade, valorizando a pluralidade, no diálogo entre a parte e o todo, entre o todo e as partes, criar novas realidades quando parecer que os limites impostos pelos poderes hegemônicos são intransponíveis.


Deste modo, o nosso desafio é compreender que a reforma do pensamento é também uma reforma da educação. O desafio é maior, pois precisamos ir além do ensino disciplinar e do conhecimento fragmentado, superando o modo de pensar linear e simplificado. Inspirado pela vida centenária de um homem que fez da prosa poesia e provou que poesia pode ser mais precisa do que a prosa, convoco a todos para nos auxiliar a pensar sobre isto: como que podemos interligar os saberes? Como interligar os saberes dos mais diversos campos disciplinares? Como interligar nossas aspirações? E, o mais importante, como nos interligar formando um grande coletivo?


Não há dúvidas do que nos diz Edgar Morin e que vale ser repetido: o mundo está em nós, tanto quanto nós estamos no mundo. Retornamos a esse mundo em que estamos para voltarmos a ser um com ele ou não haverá muitas alternativas para interligar o que separamos arbitrariamente. Aos seus 103 anos, Edgar Morin está em nós assim como nós estamos em Edgar Morin, afinal, lê-lo e considerá-lo relevante é uma maneira de fazer da vida-acontecimento uma teia de relações que aproxima continentes, países e pensamentos. Um homem centenário que nunca perdeu a curiosidade, o amor e a vontade de amar, como um jovem em pleno desabrochar. 


Vida ainda mais longa a Morin que está no mundo assim como está em mim.


 


 


Texto escrito no dia 08/07/2024, em uma noite amena do inverno brasileiro, para celebrar e reverenciar uma vida que abre e sempre abriu novas vias.

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